Além do Cidadão Kane

sábado, 17 de maio de 2008

Feminismo e diversidade: refletindo seus diferentes matizes e cores

Por Kátia Souto*

O tema por si só é instigante e exige que antes reflitamos sobre o feminismo. De que conceito(s) de feminismo(s) estamos falando? De quais espaços do feminismo estamos falando? Falo do espaço que represento, da União Brasileira de Mulheres. E começo relembrando a célebre afirmação de Simone de Beauvoir, e que foi e sempre será marcante para todas nós mulheres feministas: “não se nasce mulher, se faz mulher”. Ao que nós feministas marxistas acrescentamos, faz-se mulher em um determinado tempo histórico, em um tipo de sociedade determinada por formas de relações entre as classes, incluindo aí também raça/etnia, gênero, geração e orientação sexual. Ou seja, fazer-se mulher em cada tipo e período de realização de um sistema social ganha conotações particulares, ganha cores e matizes próprias e diversas.

Classe e gênero na atualidade! Não caberia referir apenas a relações sociais de classe e de sexo/gênero, o que pode implicar um viés marxista estruturalista, de reconhecimento de autonomias, admitindo que classe e sexo/gênero ocorreriam em paralelo. Tampouco referir-se a relações de sexo/gênero segundo as classes, o que poderia escorregar para uma perspectiva marxista funcionalista, passando o conceito de classe a definir tudo. A proposta é discutir relações sociais de gênero em sociedade de classes nas condições objetivas de hoje e levar em conta que estas relações são dinâmicas e vivas e sofrem mudanças da sociedade e de seu tempo.

Aí reside o grande desafio – quais condições objetivas? E de quais mulheres em quais condições objetivas? E os homens? Pois estamos falando das relações entre os gêneros e como elas se expressam. Portanto, voltamos ao ponto inicial – de que feminismo(s) estamos falando? De que projeto(s) político(s) feminista(s)? Esta é a primeira diversidade posta.

Para pensar este projeto então, partimos da seguinte reflexão: a antropóloga feminista Gayle Rubin (1975) assim inicia sua discussão sobre o que é gênero: “Certa vez Marx perguntou: “ O que é um escravo negro? Um homem da raça negra. Esta explicação é tão boa quanto outra: um negro é um negro. Ele se torna escravo somente em certas relações.”

Mary Castro parafraseando diz: “ O que é uma mulher subordinada? Uma fêmea da espécie humana. Esta explicação é tão boa quanto uma mulher é uma mulher. Ela se torna doméstica, esposa, objeto, prostituta, etc., somente em certas relações.” O que queremos chamar atenção é para: 1) sexo não é uma simples variável demográfica, biológica ou natural, mas traz em si toda uma carga cultural e ideológica; 2) não se pode compreender o específico da identidade feminina, sua posição na sociedade, valorização ou desvalorização do trabalho, divisões sexuais do trabalho, casamento, família, exercício da sexualidade e do erótico, etc., e o componente humano, sem análises comparativas e relacionais (mulheres X mulheres; mulheres X homens e homens X homens), já que ambos são construtos desta sociedade e se relacionam entre si; 3) o gênero se realiza culturalmente por ideologias específicas em cada momento histórico e tais formas estão associadas a apropriações político-econômicas do cultural, que se dão em lugares e períodos determinados.

A noção de historicidade, como base de todas as relações e valores sociais constitui-se como fundamental para pensar projeto(s) político(s) do(s) feminino(s).

O conceito de gênero passou e passa cada vez mais a ser incorporado ao pensamento feminista. Na verdade, mais do que isto passa a ser incorporado em várias dimensões da realidade – em pesquisas, análises e políticas públicas. A abordagem de gênero como importante ferramenta para pensar a desconstrução da identidades fixas, isto é, os caminhos através dos quais os gêneros são culturalmente construídos em seus contextos e significados. E pensar tudo de forma relacional. Do público ao privado. Do coletivo ao particular.

Pensar a diversidade das mulheres: negras, índias, jovens, da terceira idade, deficientes, rurais, urbanas. Pensar a diversidade dos lugares: donas de casa, trabalhadoras, estudantes. Pensar a diversidade dos espaços do ser/estar: solteiras, casadas, heterossexuais, homossexuais.

De quais mulheres estamos falando? Para quais mulheres estamos falando? Com quais mulheres queremos dialogar? De que projeto estamos falando? De qual sociedade estamos falando? Voltamos ao ponto de partida, viajamos em círculos?? Não, voltamos ao ponto de partida sempre, para refletir, mas voltamos mais plenas, somando experiências, individuais e coletivas, rompendo amarras e preconceitos, vencendo tabus e obstáculos, superando o tempo, construindo novas certezas, abrindo novas portas, incluindo sangue novo, vidas novas, ampliando horizontes, construindo novas perspectivas, novos caminhos.

Não há manuais prontos sobre este ou tal e qual feminismo! O feminismo é um processo em aberto, é uma construção inacabada, carente de debate(s), sempre. Requer criatividade, requer resgate da radicalidade, requer repensar e inclusão. Requer despir de verdades prontas e acabadas. Requer debate de idéias. Requer superar conceitos e pré-conceitos. Requer humildade. Requer emoção e paixão.

Marxismo e feminismo não são antagônicos como buscaram ecoar pelos cantos e pelos movimentos. Há que se resgatar a importância do marxismo para a reflexão teórica da importância de se romper as amarras das mulheres para a sua verdadeira emancipação. A grande contribuição do marxismo para a luta feminista e a emancipação das mulheres é a desnaturalização da opressão de gênero, da subalternidade das mulheres nas relações de gênero no campo biológico. O que permite pensar e construir a igualdade de gêneros nas relações.

Estamos percorrendo caminhos que outras já percorreram antes, e tantas que ainda não chegaram e com certeza virão e se somarão a nós, quando abrirmos mais o nosso pensar e o nosso coração. Estamos ainda carentes da inclusão das diferentes mulheres dos diferentes espaços de nossa sociedade que se dizem e se sentem feministas e que nós ainda não a incluímos neste ou naquele projeto. Que pretensão? O projeto é nosso e para nós?? Pensamos, pensávamos que era para todas. Vamos resgatar a diversidade, que de novo, outra vez não é nossa! É do tempo, do espaço, da história de cada uma e de todas. Vamos somar e lembrar que cada uma de nós traz a marca de outras Marias que chegaram antes. Que bom que todo ponto de chegada é também ponto de partida. Que cada encontro é construção de novos encontros. E que no próximo encontro feminista haja mais inclusão e outras mulheres somem-se a este espaço e que possamos discutir também o espaço do diálogo com os homens.

*Kátia Souto é jornalista e coordenadora nacional da União Brasileira de Mulheres
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