Além do Cidadão Kane

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Para punir torturador não é preciso mudar a Lei da Anistia

José de Souza Castro, do Tamos com Raiva

Voltam aos armários os esqueletos dos mortos sob tortura durante o regime militar. Os que sobreviveram poderão usufruir suas indenizações, algumas delas de alto valor monetário. Não se mexe na Lei de Anistia, editada em 1979, pelo último ditador, o general João Baptista de Figueiredo. A decisão é do presidente Lula que mandou o ministro da Justiça, Tarso Genro, esquecer o assunto. Só que tortura não se esquece jamais, e muito menos desse modo. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes do Exército, Enzo Peri, da Aeronáutica, Juniti Saito, e da Marinha, Júlio de Moura Neto, consideram esta uma página virada. Como se enganam! Primeiro, porque ainda corre na 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo uma ação proposta pela família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. O coronel comandava o DOI (Destacamento de Operações de Informações) em 1971, quando Luiz Eduardo, então com 23 anos, morreu em seus porões. Dois dos três desembargadores que examinam o recurso do coronel pedindo que a ação seja suspensa já votaram. O primeiro, desembargador Luiz Antonio de Godoy, acolheu o recurso. Ontem o desembargador De Santi Ribeiro votou pelo prosseguimento da ação. O voto de desempate é esperado para a próxima terça-feira. Será dado pelo desembargador Elliot Akel. Mesmo que o coronel Ustra se livre dessa ação, outras virão. Pois foram muitos os mortos sob tortura no DOI. E Lula e seus ministros nada podem fazer para contê-las. Crime de tortura é imprescritível. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, já foi advogado, deputado federal pelo PMDB gaúcho, ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso e presidente do Supremo, antes de ser nomeado por Lula para o atual cargo, que lhe dá o direito de desfilar orgulhosamente por aí em uniforme de campanha igual ao dos comandantes das Forças Armadas (foto). Não se espanta, portanto, que ele diga que a tortura ocorreu no regime militar e só se tornou um crime imprescritível a partir da Constituição de 1988. É possível que, com o Supremo que temos hoje, sua tese vingue. Mas, daí a achar que é uma página virada, vai uma grande distância. A impunidade, que se vai tornando uma regra neste país, não alcançou os torturados. Estes foram punidos, da forma mais brutal, por agentes do Estado. Estes não poderiam ter recorrido à delinqüência para reprimir a delinqüência de inimigos, conforme observou ontem Clóvis Rossi. Ele lembra que praticamente todos os que pegaram em armas contra a ditadura foram punidos, e também os que não se armaram para combatê-la, com o jornalista Vladimir Herzog e o sindicalista Rubens Paiva, mortos nos porões da repressão militar. "Do lado oposto, no entanto, ninguém foi punido. Muitos, ao contrário, foram promovidos", lembra Rossi. Além de uma interpretação correta da Lei da Anistia, para punir os torturadores, o ministro Tarso Genro queria a abertura dos documentos secretos do regime militar e a entrega dos restos mortais dos desaparecidos do Araguaia. Sobre isso, o comandante do Exército, general Enzo, diz, candidamente, que seria "o primeiro interessado" em entregar os documentos e os restos mortais do Araguaia às famílias, mas não há documentos nem vestígio dos corpos na mata. "Eu simplesmente não tenho o que entregar, nem posso inventar", teria dito o general, segundo relato da jornalista Eliane Cantanhêde, na Folha de S. Paulo de ontem. Para Jânio de Freitas, há uma distorção deliberada no que vem sendo noticiado. Tarso Genro não quer mudar a Lei de Anistia. O ministro apenas faz uma interpretação jurídica da lei, segundo a qual não seria possível anistiar a tortura, que não é crime político, mas crime comum, como o definia, inclusive, a própria legislação penal vigente na ditadura. Esse é o entendimento de juristas, advogados, juízes e promotores de Justiça de todo o país que assinam o "Manifesto dos Juristas", em apoio à decisão do Ministério da Justiça, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e do Ministério Público Federal de discutir a possibilidade de que civis e militares possam ser processados pela prática de tortura durante a ditadura militar. Entre os signatários, estão o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o presidente da OAB, Cezar Britto, e juristas como Dalmo Dallari e Fábio Konder Comparato. O manifesto é uma reação à reunião da semana passada no Clube Militar no Rio de Janeiro, em que oficiais da reserva atacaram a revisão da Lei da Anistia e o governo federal. Sobretudo, uma reação à mensagem de solidariedade, assinada pelo Comando Militar do Leste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo), aos militares que se opuseram a "agitadores e terroristas de armas na mão". De acordo com o manifesto, o processo de consolidação da democracia só estará concluído quando todos os assuntos puderem ser discutidos livremente, sem que paire sobre os debatedores a pecha de revanchismo ou a ameaça de desestabilização das instituições. Esclarece que não se discute a revisão da Lei da Anistia, mas o seu alcance. Ou seja, ela não contemplaria os crimes de tortura, que não são crimes políticos, "e sim, crimes de lesa-humanidade". Acrescenta o manifesto que "a perversa transposição deste debate aos embates políticos conjunturais e imediatos, ao deturpar os termos em que está posto, busca somente mutilá-lo – e atende apenas aos interesses daqueles que acreditam que a impunidade é a pedra angular da nação e que aqueles que detêm (ou detiveram) o poder, e dele abusaram, jamais serão responsabilizados por seus crimes". Para não deixar dúvida, os juristas afirmam que a lei "concede anistia apenas aos crimes políticos, aos conexos a esses e aos crimes eleitorais, não mencionando dentre eles a anistia para crimes de tortura e desaparecimento forçado, o que afasta sua aplicabilidade nessas situações". O manifesto cita ainda tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que "enfatizam a linha de continuidade que há entre eles, não deixando dúvidas para a presença em nosso ordenamento, via direito internacional, do tipo ’crimes contra a humanidade’ pelo menos desde 1945". É uma pena que Lula não goste de ler – muito menos, ele vai ler manifestos de juristas. Do contrário, seria informado, por exemplo, de que "outros países tornaram possível este processo e fortaleceram suas democracias enfrentando a sua própria história".

Original em NovaE


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