Além do Cidadão Kane

sábado, 24 de janeiro de 2009

A reconstrução do Reino

“…Ocultando a sua presença poderosa, a igreja desenvolve e gere capitais astronômicos, nas bolsas, nos grupos financeiros e confessionais que lhe pertencem ou nas «holdings» em que ela possui posições acionistas majoritárias. Ainda recentemente, como se sabe, quando já não era possível ocultar a recessão generalizada, vieram à superfície caudais de escândalos financeiros. Pois em quase todos eles foram citados grupos bancários e grandes investidores ligados aos capitais da igreja.”
Jorge Messias
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Olhando a ruína dos seus sonhos maus temos ouvido alguns homens da globalização dos mercados dizer acerca da atual crise: «As crises têm aspectos positivos. São terapêuticas. Permitem localizar os focos da infecção e desenhar uma nova economia e um novo mundo». É uma reflexão fria e brutal que despreza cinicamente os infernos do sofrimento causado pelo desemprego e pelo empobrecimento dos trabalhadores e das famílias. Mas compreende-se a lógica do raciocínio. A situação é dramática. E entre os ricos, tal como entre os pobres, a esperança é a última a morrer. Depois renasce. E mesmo quando a esperança se opõe à razão, basta muitas vezes reinventá-la para se criar uma nova realidade virtual.
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Assim o entendem Blair, Gordon Brwon e um punhado de altas patentes do grande capital. Reuniram-se, meditaram no assunto e concluíram, finalmente, que o capitalismo clássico estava esgotado, sem pernas para andar. Mas que não se entendesse, no entanto, que o quadro assim criado assinalava a sua morte. A presente crise apenas vinha revelar que o modelo de capitalismo até aqui proposto se esgotara. É preciso portanto reinventar o sistema dando-lhe uma face humanizada que atraia a confiança dos povos. Um capitalismo novo que ocupe um espaço social vazio, abandonado pelos poderes do Estado. Enfim, uma nova face do dinheiro a que se poderia chamar, por absurdo, Capitalismo Social. Os capitalistas reivindicariam a defesa dos interesses dos trabalhadores que o capital explora, nos mais diferentes planos: segurança social, saúde, educação, proteção da família, tempos livres, emprego, etc., etc. Seriam eles, os grandes empresários, a dirigir essas lutas. Os custos dessa mudança estratégica seriam, naturalmente, em grande parte subsidiados pelo orçamento do Estado, embora o novo mercado ficasse também aberto aos capitais privados das ONG, IPSS, Misericórdias, Sociedades Civis, Fundações Filantrópicas e outras formações que mantivessem as aparências dos fins não lucrativos. À margem dos aspectos de solidariedade social postos em evidência, o processo de acumulação de capitais e de valorização dos lucros continuaria a ser praticado pelos grupos econômicos, tal como até aqui. O Estado seria o banqueiro desta gigantesca operação e cederia ao mundo empresarial e à igreja os poderes de decisão nas áreas político-sociais.
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O novo capitalismo em construção caracterizar-se-ia pois pelas dimensões gigantescas dos capitais investidos nas suas empresas «holding», pelo esmagamento da classe média baixa e pela entrega de toda a área da acção social do Estado a parcerias público/privadas. Em traços gerais, é este o plano que o grande capital defende para inverter, com lucro, o perigoso sentido tomado pela crise econômica e financeira do sistema. Por isso dizem haver potenciais «virtudes terapêuticas» nesta convulsão mundial.
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“Revolução“ ou nem tanto?
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Os comentadores afetos ao capitalismo consideram a proposta salutar e verdadeiramente «revolucionária», visto ser reação pronta e original aos riscos evidentes desta crise imprevista. No entanto, o seu otimismo aparente mal pode disfarçar o pânico e a estupefação que reinam nas fileiras dos mais ricos. Os banqueiros bem sabem que a crise profunda – que tão grandes estragos já causou – ainda mal começou a fazer-se sentir. E também estão conscientes da sua incapacidade para conceber do pé para a mão uma fórmula mágica que lhes permita travar a implosão do seu mundo doirado. Por isso, são obrigados a recorrer a receitas já conhecidas e de há muito praticadas que recortam dos compêndios e colam umas às outras. A fórmula proposta não é nova e na realidade as operações agora anunciadas há muito que se preparam. Nada têm a ver com a crise econômica e representam, na realidade, um projeto de subversão do Estado social e constitucional. Envolvem forças poderosas e poderes ocultos. A Igreja Católica é sua parceira insubstituível. Não é por acaso que as constituições da igreja atribuem à instituição três missões centrais: a de ensinar, a de governar e a de santificar. E são exatamente estas linhas de força que estão patentes no projeto apadrinhado por Tony Blair. Poder capitalista e poder religioso encaixam-se perfeitamente um no outro.
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A rede católica é vastíssima. Em todo o mundo há perto de 220.000 paróquias, 2.300 centros pastorais, 4.100 bispos, cerca de 400.000 sacerdotes, perto de 1 milhão de professores e professoras, 365.000 catequistas e aproximadamente 4.300 padres diocesanos. A chamada sociedade civil é formada por uma panóplia de milhares e milhares de ONGs, IPSS, Fundações filantrópicas e de desenvolvimento local, ordens religiosas ou laicais, hospitais ou centros assistenciais, missões, movimentos juvenis e de mulheres, catequeses, creches, assistência aos emigrantes, colégios, universidades, etc. São pontas de lança da igreja católica servidas por milhares de voluntários.
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Também o poder financeiro do Vaticano não deve ser esquecido. Anonimamente, ocultando a sua presença poderosa, a igreja desenvolve e gere capitais astronômicos, nas bolsas, nos grupos financeiros e confessionais que lhe pertencem ou nas «holdings» em que ela possui posições de acionista majoritárias. Ainda recentemente, como se sabe, quando já não era possível ocultar a recessão generalizada, vieram à superfície caudais de escândalos financeiros. Pois em quase todos eles foram citados grupos bancários e grandes investidores ligados aos capitais da igreja. Recordem-se, ao acaso, os exemplos muito referidos dos grupos Bilbao e Viscaya, do Popular, do Hispano-Americano, do Benedetti, do Santander, do Deutsch Bank, do J.P. Morgan, do Chase Manhattan Bank, além de uma interminável lista de outras potências financeiras. Todas elas têm firmes ligações ao Vaticano, como em escândalos anteriores ficou provado, nomeadamente no rescaldo do «Caso Marcinkus», nas revelações da Loja Maçônica P2 ou nas fraudes de Ruiz Mateos. Bom será notar-se que o «milagre» da multiplicação dos capitais da igreja se verificou entre as duas grandes guerras mundiais, em época de recessão, quando uma operação financeira gigantesca do Vaticano, com a assistência da banca transnacional, fez converter em dinheiro e investimentos os verdadeiros impérios fundiários detidos pelas grandes ordens religiosas, como a Dominicana, a Salesiana ou a Companhia de Jesus. Numa grande operação de características muito semelhantes àquela que agora se prepara, a igreja soube adaptar-se à evolução dos mercados e afirmar-se como grande força financeira.
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Em conclusão, não pode deixar de citar-se o testemunho recente de dois destacados universitários católicos, os professores Joaquim Azevedo e o investigador Luís Imaginário. Disseram eles, a propósito do ensino profissional em Portugal: «O Ministério da Educação devia estar a formar profissionais para os novos territórios em termos de oportunidade de trabalho. Em vez de continuar a formar serralheiros devia estar a abrir cursos profissionais no terceiro sector, onde atuam as organizações não governamentais e as instituições particulares de solidariedade social... Não se trata de produzir assistentes sociais de segunda classe, mas de procurar responder às necessidades evidenciadas por uma população envelhecida e, ao mesmo tempo, garantir um horizonte de esperança aos jovens que ingressam nos cursos profissionais... a lógica das organizações já não é o emprego tradicional mas formas alternativas de trabalho. Hoje, a economia não precisa que todos trabalhem, precisa é que todos consumam... ».
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Os mestres da «Católica» acrescentaram depois o que entendem por objetivos da educação: «A formação profissional devia se apresentada como um valor em si e não como uma via para a obtenção de um emprego a curto prazo... estão-se a criar as condições para que, daqui a poucos anos, haja tensões sociais muito fortes !».
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Somadas estas abalizadas perspectivas do presente e do próximo futuro, ficamos informados acerca dos valores da sociedade que a banca e a igreja propõem e pretendem construir: lateralização do papel do Estado, insegurança no emprego, privatização da segurança social, reforço da divisão em classes, promoção do recurso ao crédito e apoio ao consumismo, crise econômica permanente, como motor de formação da riqueza privada, aprofundamento do fosso entre ricos e pobres.
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Todas estas ostentações dos mais ricos assentam, no entanto em pilares intensamente minados. Eles sabem que todo o sistema em que gravitam pode ruir, de um momento para o outro, como um «castelo de cartas». E temem as «tensões sociais muito fortes». Também estão conscientes das fraudes em que colaboram e da crescente dificuldade em continuar a fazer passar para a opinião pública a imagem favorável de um capitalismo utópico - convertido, solidário, filantrópico e generoso.
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Os tempos são outros. No quadro das realidades, a luta, a afirmação dos ideais, a mudança efetiva do país e do mundo.
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Original em O Diario.info
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Um comentário:

Anônimo disse...

belo post!

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