Além do Cidadão Kane

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O REGRESSO DO PRESIDENTE ZELAYA E A ESTRATÉGIA DE OBAMA PARA A AMÉRICA LATINA

A reinstalação do regime constitucional em Honduras será mais lenta do que era previsível.
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A irracionalidade do golpe e o seqüestro e expulsão (em pijama) do presidente Manuel Zelaya, ao provocarem a imediata condenação do cuartelazo pela ONU, pela União Européia e pelos Estados Unidos, a retirada da maioria dos embaixadores e o conseqüente isolamento internacional do pequeno país centro-americano, geraram a convicção de que o regresso do chefe de Estado não esbarraria com grande oposição.
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Não foi o que aconteceu. Insulza, o presidente da Organização dos Estados Americanos, escutou um rotundo não em Tegucigalpa quando ali foi exigir dos representantes do Supremo Tribunal Eleitoral e da Procuradoria da República o imediato restabelecimento da normalidade constitucional, isto é a volta de Zelaya e o fim de um governo fantoche não reconhecido por pais algum.
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Quando o avião em que viajava Zelaya se aproximou do aeroporto de Tegucigalpa o exército disparou sobre o povo – correspondentes de alguns media presentes na capital de Honduras avaliam a multidão ali concentrada em 300.000 pessoas – matando três manifestantes e ferindo dezenas. A polícia hondurenha responsabilizou o exército pelas mortes e os feridos, já que, disse o responsável presente no aeroporto, Coronel Mendoza, já tinha dado ordem à polícia para retirar. Os generais que assaltaram o poder tiraram a máscara.
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Apesar de ver recusado o pedido de aterragem e das ameaças de intercepção por aviões da Força Aérea hondurenha, o avião presidencial fez duas aproximações à pista de aterragem (23,55 horas de Lisboa), não lhe tendo sido possível aterrar por os militares golpistas terem mandado ocupar a pista com veículos militares. O avião presidencial aterrou em Manágua e daí seguiu para Salvador, onde reuniu com os presidentes Cristina Kirchner da Argentina, Rafael Correa do Equador, Fernando Lugo do Paraguai, Muricio Funes de Salvador e José Insulza, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos.
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A tenaz resistência dos golpistas é tema de múltiplas e contraditórias especulações. Até agora um denso véu de mistério envolve a teia de cumplicidades que precedeu a tomada do poder pelas Forças Armadas. É possível que nunca se esclareça quando e em que circunstancias o Presidente Obama foi informado do envolvimento de responsáveis da Administração norte-americana no golpe. Mas foi já confirmado que, nos dias anteriores à decisão do Tribunal de «afastar» Zelaya e substituí-lo por um parlamentar marionete, se realizaram na Embaixada dos EUA reuniões secretas com a participação dos golpistas. Segundo as agências noticiosas, o embaixador teria desenvolvido esforços para evitar que levassem adiante a intentona.
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Essas revelações colocam a Casa Branca numa posição muito incômoda, porque o seu silêncio somente foi quebrado após a concretização do gorilazo. Com a agravante de os EUA não terem retirado o embaixador.
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Segundo o Departamento de Estado, o diplomata trabalhava para uma solução para a crise que conduzisse a um compromisso entre as «partes em conflito».
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Em Honduras, tradicionalmente, as Forças Armadas não tomam qualquer decisão importante sem o aval do Embaixador dos EUA. Na capital está instalada uma base militar norte-americana. Os generais golpistas estudaram na famosa Escola das Américas dos EUA e gozam da inteira confiança do Pentágono.
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Que se passou então nos bastidores?
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É transparente que esses militares, os juízes do Supremo Tribunal Eleitoral, o «presidente» fantoche e a maioria dos deputados contavam com apoios que não funcionaram.
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Também merece reflexão a atitude do Cardeal Óscar Rodriguez, repetidamente apontado como possível sucessor de Bento XVI. O purpurado, mesmo após a condenação mundial do golpe, dirigiu um apelo ao Presidente Zelaya para que não voltasse no domingo a Tegucigalpa.
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Desde já se pode afirmar, porém, que a inevitável derrota do golpe será um acontecimento político que pelo seu significado transcende o quadro centro-americano.
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O desfecho previsível – uma vitória dos governos progressistas da América Latina – inviabilizará o desenvolvimento da estratégia esboçada para a Região pelo presidente Obama.
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Manuel Zelaya, sublinhe-se, é um político corajoso e com o sentido da dignidade, mas não um revolucionário. Tem como político um passado conservador. Foi eleito como candidato do Partido Liberal, alinhado com Washington. Mas a partir de 2008 fez tímidas reformas que desagradaram à direita, visitou Havana e aproximou-se dos governos de Chávez, do boliviano Evo Morales e do equatoriano Rafael Correa, precisamente a troika que Washington identifica como ameaça à sua hegemonia no Hemisfério.
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A vaga de indignação levantada a nível mundial pelo cuartelazo colocou o Presidente Obama numa situação dilemática na qual todas as opções serão negativas para os chamados interesses dos EUA.
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Permanecer passivo teria um efeito devastador para a sua imagem de defensor intransigente da democracia no Continente. Decidiu condenar o golpe, mas consciente de que a contribuição dos presidentes da Venezuela, da Bolívia, do Equador e da Nicarágua para o fracasso do cuartelazo compromete o desenvolvimento da sua estratégia continental. Honduras já aderiu à Alba e tudo indica que a tendência de Zelaya será para uma aproximação maior com os governos e forças progressistas da América Latina.
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O embaixador de Honduras na Organização dos Estados Americanos (OEA), Clareton, não hesitou em acusar de cumplicidade Otto Reich, ex-subsecretário de Estado para as Américas de George Bush e destacada personalidade da extrema direita norte-americana, que esteve envolvido no golpe militar de 2001 montado para derrubar Hugo Chávez.
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Seria entrar no terreno da especulação fazer previsões sobre as seqüelas do golpe.
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O rumo das coisas em Honduras será decisivamente condicionado pela nova relação de forças resultante da derrota da oligarquia local e dos militares gorilas. O apoio das massas a Zelaya será porém, decisivo para o avanço do processo.
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Os acontecimentos dos últimos dias nas Honduras contrariaram a lógica aparente da história. Num país no qual as bases militares americanas e a CIA – sob a direção de John Negroponte, ex-proconsul no Iraque e ex-embaixador dos EUA na ONU – funcionaram como retaguarda dos contras nicaragüenses que combatiam a revolução sandinista, um Presidente vindo da direita, Manuel Zelaya, retoma as bandeiras de Francisco Morazan, o revolucionário hondurenho que no século XIX se bateu por uma América Central unida e progressista.
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Original em ODiario.info

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