Além do Cidadão Kane

terça-feira, 6 de julho de 2010

Brincando de democracia

Igor Ojeda *

Só mesmo Hillary Clinton e a grande mídia internacional e nacional acreditam que o golpe de Estado em Honduras acabou e que, agora, a democracia no país centro-americano reina novamente. Na verdade, não acreditam: tanto a secretária de Estado dos EUA quanto a imprensa hegemônica sabem muito bem o que acontece por lá. Mas preferem fazer de conta que não é com eles.

E o que acontece por lá? O mesmo desde 28 de junho de 2009, quando o presidente constitucional Manuel Zelaya foi deposto. Ou seja, o terrorismo de Estado contra os opositores ao golpe continua prevalecendo. Mas, para Hillary, assassinatos, torturas e detenções ilegais não são motivos suficientes para a Organização dos Estados Americanos (OEA) não aceitar Honduras de volta, como ela prega há meses, com o argumento de que as eleições gerais de novembro restabeleceram a democracia no país.

Com ou sem democracia, o fato é que, passado um ano, os setores golpistas são os grandes vencedores desse imbróglio que envolveu diversos países do continente, especialmente o Brasil e sua embaixada em Honduras. Apesar do surgimento da valorosa e heróica Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) – um dos maiores e mais bem organizados movimentos da história de Honduras –, Manuel Zelaya não retornou ao país, como exigia o Itamaraty, e a classe política, econômica e militar que arquitetou o quartelaço continua sendo a dona do Estado hondurenho.

O gabinete montado pelo atual presidente Porfirio “Pepe” Lobo – ele próprio apoiador do golpe – é composto, em grande parte, por golpistas ou indicados por estes. O Congresso e a Corte Suprema continuam sob controle ferrenho da oligarquia, que mantém forte presença em setores estratégicos, como a Hondutel – estatal hondurenha de telecomunicações, que, hoje, está sob o comando de ninguém menos que Romeo Vásquez Velásquez, ex-chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas quando da deposição de Zelaya – e, principalmente, nos corpos de segurança que dirigem a repressão, sob o pretexto do combate ao crime organizado.

Repressão seletiva

Mas, agora, preocupado com a repercussão internacional em tempos de internet, twitter, iphone e celular com câmera fotográfica e filmadora, o regime golpista decidiu “sofisticar” sua atuação. A repressão ficou mais seletiva: o alvo dos seqüestros, prisões e assassinatos são os principais líderes e dirigentes do movimento de resistência ao golpe.

Um comunicado divulgado pela FNRP em 27 de junho deste ano afirma que, desde janeiro, quando Pepe Lobo tomou posse, pelo menos 310 casos de violações de direitos humanos foram denunciados, 21 pessoas foram assassinadas e 53 foram detidas ilegalmente. Os que não sofrem violências físicas são processados judicialmente.

Por isso mesmo, a saída de cena oficial dos golpistas em janeiro – quando Pepe Lobo tomou posse – revelou-se uma hábil jogada. Além de se livrarem da classificação de “ditadores”, foi uma maneira de “lavar” o golpe e tentar ganhar o reconhecimento internacional para o novo regime. Afinal, a América Latina mudou. Ditaduras e golpes de Estado não são mais tolerados: a democracia está na ordem do dia no continente, mesmo que ela seja apenas formal, não importando se a sociedade como um todo é, de fato, democrática.

Mudou mesmo?

Mas, infelizmente, as coisas não mudaram tanto assim. É verdade que o golpe de junho de 2009 deixou evidente que os EUA já não exercem total controle sobre as ações dos demais países latino-americanos, como ficou explícito na expulsão de Honduras da OEA, na condenação quase unânime ao quartelaço e na própria postura vacilante e contraditória do governo estadunidense em relação ao ocorrido.

No entanto, a ação da oligarquia hondurenha mostrou também que, mesmo sob essa nova realidade vivida pelo continente, não se foi possível reverter uma situação, na teoria, fácil de ser revertida, dada a pouca margem de manobra que tinham os golpistas, no comando de um país de pequenas dimensões e influência geopolítica como Honduras.

Isso se explica, obviamente, pelo apoio dos EUA ao governo de fato. Se, por um lado, a diplomacia estadunidense anunciou a aplicação de tímidas sanções, como o bloqueio de passaportes e contas de alguns golpistas, por outro, insistiu em tratar (especialmente, Hillary Clinton) o assunto como um conflito entre duas partes equivalentes em força e em razão, quando, na verdade, o lado a se tomar era um só.

O golpe deixou claro, também, que a comovente retórica de Obama era nada mais que pura farsa – seja intencional, seja porque ele se vê de mãos atadas, não importa. Dois meses depois de o presidente estadunidense proclamar “novas relações com a América Latina” em Trinidad e Tobago, Manuel Zelaya era deposto com o apoio decisivo da embaixada dos EUA em Honduras e de agências estadunidenses de “apoio à democracia”, como USAID e NED.

Contra-ofensiva reacionária

Numa perspectiva mais pessimista, mas a ser considerada, a consolidação do golpe em Honduras pode significar, ainda, o esboço de uma espécie de contra-ofensiva da direita institucional no continente latino-americano. (Digo “institucional” porque a elite econômica mais “moderna”, como as transnacionais e os bancos, não chegaram a perder muito de seu poder, inclusive sob governos mais radicais, como os de Bolívia e Venezuela que, apesar dos inegáveis avanços, ainda não conseguiram promover grandes rupturas no campo da economia).

Ela já recuperou terreno no Chile, com a vitória eleitoral de Sebastián Piñera sobre a candidatura da Concertação (aqui, não cabe entrar no mérito de quão à esquerda são ou eram alguns governos, como, por exemplo, o de Michelle Bachelet). Na Colômbia, um dos principais responsáveis pela criminosa política de segurança do governo Uribe, o ex-ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, foi eleito com folga em 20 de junho deste ano. Na Venezuela, Hugo Chávez e seu PSUV correm o risco de perder várias cadeiras na Assembléia Nacional, nas eleições legislativas de setembro (o que já aconteceu com o casal Kirchner, em junho do ano passado). E, no Paraguai, os avanços prometidos por Fernando Lugo continuam a ser barrados no parlamento, totalmente dominado pela oligarquia tradicional.

Por isso, o peso do Brasil na conjuntura latino-americana continuará sendo muito importante. Pois, se, por um lado, a política externa do governo Lula trabalha arduamente para abrir mercados nos países da América Latina para a vergonhosa atuação das transnacionais brasileiras (desenvolver e fortalecer um capitalismo brasileiro com inserção mundial parece ser um dos projetos centrais do governo do PT), por outro, a diplomacia do Itamaraty tem sido fundamental para conter determinadas tentativas de desestabilização de governos progressistas na região.

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*Igor Ojeda é editor de internacional do semanário Brasil de Fato. Entre outubro de 2007 e outubro de 2008, foi correspondente na Bolívia pela mesma publicação.


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